Legado Tom Zé: prevaricação de R$ 5,3 milhões em verbas de pesquisa da Fapesp

Instituto de Biologia da Unicamp, alvo das denúncias de recursos recebidos da Fapesp (Foto: Unicamp/SEC).

A ex-empregada da Funcamp, Ligiane Marinho de Ávila, 36 – acusada de desviar R$ 5,3 milhões de projetos científicos do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp vinculados à Fapesp –, foi incluída na lista da Interpol. O escândalo, que veio à tona no final de 2023 e que agora toma conta de toda a imprensa brasileira pelos seus possíveis desdobramentos, choca, mas não surpreende os servidores técnico-administrativos da Universidade, sempre perseguidos e silenciados quando identificam e denunciam possíveis irregularidades. Além do rombo milionário na Fapesp, muitas perguntas continuam sem resposta, internamente. Por que o ex-reitor Tom Zé encerrou as investigações à véspera da disputa para a nova reitoria?

Atualizações sobre o caso

Segundo informou o Ministério Público (MP) em reportagem recente da EPTV, Ligiane teria comprado 100 mil em moeda estrangeira com dinheiro público, antes de deixar o Brasil em fevereiro de 2024, após a descoberta das irregularidades. Ao todo, 160 transferências foram feitas diretamente para sua conta, totalizando mais de R$ 5 milhões.

Investigadores apontam que a ex-funcionária da Funcamp usou uma empresa aberta em seu próprio nome, em 2018, para emitir notas fiscais falsas apresentadas à Fapesp. Os documentos simulavam serviços nunca realizados, como compra de materiais e manutenção de equipamentos, com valores entre 6 e 12 mil reais.

O MP já solicitou a prisão preventiva de Ligiane, além do bloqueio de bens e o pagamento de R$ 4,5 milhões em indenizações, com juros e correção monetária. A suspeita teria sacado parte do dinheiro em dois meses (junho e julho de 2023), segundo extratos bancários obtidos e divulgados com exclusividade pela emissora paulista.

Em entrevista à EPTV, o promotor Fernando Vianna afirmou que os pesquisadores do IB envolvidos nos projetos podem ser responsabilizados civilmente pela devolução dos valores. A Fapesp já moveu 34 processos contra os pesquisadores, por negligência, cobrando ressarcimentos que ultrapassam R$ 200 mil em alguns casos – muito pouco, considerando o valor total do rombo.

Enquanto o MP ainda investiga possível conivência dos professores do IB, a Unicamp por sua vez optou por arquivar a investigação interna, alegando que a Fapesp já teria iniciado a cobrança dos valores desviados diretamente dos pesquisadores. É o que está posto: a gestão Tom Zé prevaricou ao fechar os olhos para possíveis desvios de conduta de seu corpo acadêmico.

Em um depoimento gravado em março, Ligiane afirmou que agia com o conhecimento e até sob solicitação dos professores. A gravação, obtida pela EPTV, revelou novos detalhes sobre o caso, envolvendo desde a emissão de notas fiscais falsas, a transferências suspeitas e uma possível rede de conivência dentro do IB.

Ligiane admitiu que valores milionários passaram por sua conta, mas negou ter ficado com todo o dinheiro. “Do jeito que estão falando, parece que eu saí com R$ 5 milhões embaixo do braço. Mas os pesquisadores sabiam que eu centralizava os pagamentos. Eles pediam para ‘mascarar’ orçamentos e notas fiscais”, declarou à emissora.

Ela relatou que professores chegavam a entregar cartões bancários e senhas para que ela realizasse transações, prática que era endossada por documentos internos da Universidade, segundo a reportagem. Além disso, docentes teriam solicitado reembolsos para gastos pessoais, usando verbas de pesquisa.

A defesa da ex-funcionária argumenta que a Unicamp tolerava as irregularidades. “Ela repassava valores com pleno conhecimento dos docentes. A falta de fiscalização criou o problema”, disse o advogado da acusada, Rafael de Azevedo.

Questionamentos

O Coletivo Travessia tem diversos questionamentos à nova reitoria da Unicamp sobre o ocorrido. Os nomes dos pesquisadores envolvidos no escândalo do IB serão divulgados? A sindicância interna, fundamental na averiguação de falhas administrativas, desvio de finalidade e responsabilidades, será retomada? Caso, constatado o envolvimento dos pesquisadores no recebimento de recursos indevidos, eles poderão responder criminalmente, com possibilidade de exoneração dos cargos? Qual a responsabilidade da Direção do IB na condução do caso? Como a Unicamp fiscaliza os trabalhadores terceirizados na Universidade, nas diversas unidades, considerando que os trabalhadores da Funcamp estão subordinados a servidores Unicamp concursados, docentes e não docentes?

Funcamp: O “caixa 2” da Unicamp

Há tempos, o papel da Funcamp na Unicamp é questionado. Criada em 1977, a Fundação se define como a “principal interveniente administrativa dos convênios e contratos firmados entre a Unicamp e empresas terceiras, públicas ou privadas, no que se diz respeito à gestão dos recursos financeiros, de recursos humanos e de infraestrutura física, viabilizando a execução dos projetos acadêmicos”. A Funcamp movimenta mais de 1.500 projetos da Unicamp, que juntos somam um montante orçamentário de mais de R$600 milhões.

Para o Travessia, esse escândalo é apenas uma prova dos impactos nefastos da terceirização nas universidades públicas, que se tornou o principal papel não só da Funcamp, mas de todas as demais fundações de apoio universitárias do país, responsáveis pela gestão de um grande volume de recursos, em grande parte, públicos, sem qualquer compromisso com o estabelecimento de mecanismos de transparência e controle social que coíbam eventuais desvios. Por isso, é fundamental que a Unicamp faça a imediata abertura de contas da Funcamp, de modo a garantir total transparência junto aos órgãos fiscalizadores e à sociedade.