Projeto de lei na Alesp que propõe cobrança de mensalidades nas universidades estaduais paulistas reacende pauta conservadora e gera mobilização em defesa da educação pública
Um projeto de lei protocolado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) propondo a cobrança de mensalidades nas universidades estaduais (Unicamp, USP e Unesp) vem sendo alvo de crítica e mobilização de entidades e setores comprometidos com a defesa da educação pública. Divulgado em Diário Oficial no dia 17 de setembro, o PL n° 672/2024, de autoria do deputado estadual Leonardo Siqueira (Novo), repercutiu quase que imediatamente nas três universidades que são alvo da proposta. No entanto, especialistas e lideranças políticas garantem que o projeto não tem chances de ir adiante: além de ferir garantias previstas na Constituição Federal e Estadual, a cobrança de mensalidades em universidades públicas seria uma medida demasiadamente impopular, dificilmente bancada até mesmo pelos grupos políticos que, vira e mexe, insistem em pautar o assunto.
“[O PL n° 672/24] não será colocado em pauta de votação porque, no acordo de lideranças, tem que ter o aceite de todas elas, senão não entra em discussão. E se entrar, a gente obstrui, então não tem a mínima condição de prosperar”, garante o deputado estadual Carlos Giannazi, líder do PSOL na Alesp. Para ele, no entanto, é preciso que a população se mantenha alerta, pois esse tipo de projeto, embora nasça com os dias contados, tem como objetivo fomentar o debate e formar opinião “para o bem e para o mal” – e caso seja encaminhado pelo governo, aí sim poderá ser pautado sem possibilidade de obstrução.
“Estou no meu quinto mandato como deputado estadual e em todas as legislaturas aparecem propostas na tentativa de cobrar mensalidade nas universidades públicas. É uma velha pauta da direita, e agora da extrema direita, que sempre insistiu nesse tema. E isso se intensificou muito nos últimos anos porque, com a questão das cotas raciais, com a conquista das cotas para alunos de escolas públicas, quando esses estudantes começam a entrar na universidade pública, não só nas federais, mas nas estaduais também, isso passa a incomodar a burguesia: e as elites econômicas não aceitam isso”, analisa Giannazi.
Segundo Ivanilda Reis, coordenadora-geral da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra) e liderança do Travessia, embora o PL n° 672 tenha como alvo as universidades estaduais paulistas, ele exige mobilizar o acúmulo de experiências das lutas contra a privatização da educação em âmbito nacional. “Essa luta não é só das estaduais, e essa luta não começa agora. Nós, das universidades federais, travamos essa luta há muitos anos: em defesa da educação pública, de qualidade, de uma educação que seja inclusiva, e que garanta o acesso e a permanência”.
Por trás da cobrança de mensalidades, um projeto privatista e neoliberal
Para entender o que está por trás desse tipo de proposta para cobrança de mensalidades em universidades públicas no Brasil, o Travessia entrevistou o pesquisador e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Nelson Cardoso Amaral, ex-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). Na opinião dele, esse assunto sempre volta à tona no Brasil por conta das disputas que envolvem o investimento público em áreas como educação, saúde ou previdência social. “A origem disso tudo está na disputa do dinheiro do fundo público que, no final, é o dinheiro que a população investe para desenvolver políticas de todo tipo no país. E essa disputa é ferrenha: é sempre o lado social brigando, entre aspas, com o lado do capital”, avalia.
Segundo o professor, a Emenda Constitucional n° 95, que ficou conhecida como “teto de gastos”, é um exemplo notório dessa disputa em que o capital acaba sempre ganhando, já que diminuir o gasto social implica em ampliar o processo de privatização e consequente precarização dos serviços públicos. “Se você coloca mais entraves para a educação pública, mais as pessoas serão levadas a procurar o ensino privado. Se você tira dinheiro da previdência, faz as pessoas buscarem planos privados de previdência. Quando você tira o dinheiro público da saúde, as pessoas são levadas a contratar planos privados de saúde. Esse é o cerne da disputa que existe na sociedade capitalista”, argumenta o pesquisador, lembrando que a privatização é um dos objetivos centrais da agenda neoliberal.
Para Nelson Amaral, esse contexto ajuda a entender a insistência em propostas que envolvem a cobrança de mensalidades nas universidades públicas do país. “No entanto, para esse tipo de projeto ser discutido, aprovado e entrar em vigor, é preciso alterar a constituição brasileira e, no meu entender, isso esse é algo muito difícil de a sociedade aceitar no Brasil. Desde quando a Constituição foi aprovada, em 1988, já foram muitas e muitas tentativas nesse sentido – nenhuma avançou”.
Na opinião do deputado Carlos Giannazi, o projeto de cobrança de mensalidades nas universidades estaduais deve ser entendido como parte de um processo mais amplo de ataques à educação, que vem sendo promovido pelo governador Tarcísio de Freitas no Estado de São Paulo. Ele lembra da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 9 que, desde o ano passado, propõe reduzir de 30% para 25% o orçamento investido na educação paulista, e está pronta para ser votada na Alesp. “Se aprovada, essa PEC vai retirar 10 bilhões de reais da educação, o que é um crime e vai afetar todo o ensino em nosso Estado. Ela altera um dispositivo aprovado desde 1989 na constituição estadual, como uma conquista do magistério do Fórum Estadual da Educação”, alerta.
“É dentro dessa lógica da privataria bolso-tucana que aparece esse projeto de cobrança de mensalidades nas universidades estaduais, que na verdade seria uma porta de entrada para uma privatização mais ampla, que já está sendo proposta para a Sabesp, a Fundação Casa e as escolas estaduais”, completa o parlamentar.
Desconstruindo mitos sobre uma universidade pública elitizada
Um dos argumentos mais utilizados para a defesa da cobrança de mensalidades nas universidades públicas brasileiras é de que a maior parte dos estudantes dessas instituições vem do ensino médio privado ou é de famílias de classe média e alta, que teriam plenas condições de arcar com tais custos – sugerindo, portanto, que o ensino superior público seria elitizado. Além disso, a cobrança de mensalidades é apresentada como uma forma viável para contornar os frequentes problemas de financiamento enfrentados pelas instituições de ensino superior públicas do país. Segundo o professor Nelson Amaral, no entanto, tratam-se de mitos que devem ser refutados com pesquisas e dados concretos sobre a realidade do ensino superior público brasileiro.
Entre 1996 e 2018, a Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) realizou ao menos cinco pesquisas sobre o perfil socioeconômico e cultural de estudantes das universidades federais (1996, 2003, 2010, 2014 e 2018), que revelam um quadro muito diferente daquele pintado pelos defensores do fim da gratuidade do ensino superior no Brasil. Como é possível observar no gráfico abaixo, a partir de 2010 estudantes de escolas públicas passam a representar a maioria das matrículas nessas instituições. De acordo com o professor Nelson Amaral, o grande salto observado a partir de 2014 deve ser entendido como reflexo direto da aplicação da Lei de Cotas, aprovada em 2012.
Percentuais de estudantes das universidades federais que fizeram o ensino médio (integral ou majoritariamente) nos setores público e privado no Brasil.
Já o gráfico a seguir mostra como a parcela de estudantes com renda per capita de até 1,5 salário mínimo – parâmetro que é utilizado para concessão de bolsas integrais para alunos de universidades particulares através do Programa Universidade para Todos (Prouni) –, aumentou expressivamente nas universidades federais, especialmente depois da Lei de Cotas: se entre 1996 e 2010 esse percentual ficava ao redor de 40%, já bastante significativo, a partir de 2014 passa a mais de 60%, chegando a 70% em 2018.
Percentuais de estudantes das universidades federais com renda mensal de até 1,5 salário mínimo (SM) per capita no Brasil.
“A última pesquisa da Andifes mostrou que mais de 70% dos estudantes das universidades federais têm renda per capita de até 1,5 salário mínimo. Então, em tese, todos eles teriam direito à bolsa integral do Prouni” – o que também representaria um custo alto para o Estado, que concede incentivos fiscais às universidades que aderem ao programa. “Apenas 30% dos estudantes das federais têm renda maior que isso, então não é verdade que só tem ricos estudando na universidade pública”, pondera o professor.
Os que defendem a cobrança de mensalidades nas universidades públicas brasileiras também costumam usar como argumento o fato de alguns países desenvolvidos já fazerem isso. Porém, como explica Amaral, o montante investido por esses países no ensino superior é muito maior que no Brasil, assim como a renda per capita da população, dificultando comparações do tipo. E mesmo nos países onde a cobrança de mensalidades já é realidade, o valor arrecadado equivale a uma porcentagem muito pequena do orçamento necessário para manter as instituições públicas de ensino superior.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração nessa discussão é o fato de o ensino superior no Brasil já ser demasiadamente privatizado: desde o período da ditadura militar, houve uma inversão do número de matrículas nas universidades, que passaram a se concentrar no setor privado, como mostra o gráfico abaixo.
Distribuição das matriculas em instituições públicas e privadas de ensino superior no Brasil (1960-2022).
Já em comparação com outros países, o Brasil é um dos que têm a maior concentração de matrículas no ensino superior privado (73,8%), perdendo apenas para Israel (82,2%), Coreia do Sul (80,4%) e Japão (78,9%), de acordo com dados compilados pela Unesco. No mesmo sentido, os dados do Censo da Educação Superior de 2020 mostram que a porcentagem de matrículas em universidades privadas no Brasil chega a 77,2%.
Oferta da educação superior em instituições privadas (2019).
Mesmo em países como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Holanda, onde a cobrança de mensalidades já ocorre, a taxa de matrículas em universidades privadas é muito inferior se comparada ao Brasil, ou seja: a maior parte do financiamento das instituições de ensino superior continua dependendo de investimento público. “Se não me engano, arrecada-se com mensalidades algo em torno de 5,5% do orçamento dessas universidades – o que não representa quase nada. É um montante muito pequeno para todo o estrago que isso poderia fazer no sistema público de ensino superior brasileiro”, avalia o pesquisador.
Vale ressaltar que o modelo de cobrança de mensalidades proposto no PL n° 672/24 que tramita na Alesp é chamado de Empréstimo com Amortizações Condicionados à Renda (ECR), em que a dívida acumulada durante o curso de graduação é paga depois que o estudante se forma, de acordo com a evolução de sua renda. No entanto, como a renda per capita no Brasil é muito inferior à dos países em que já existe a cobrança de mensalidades, os valores arrecadados aqui poderiam ser ainda menores.
Para Nelson Cardoso Amaral, um bom argumento para a defesa da gratuidade do ensino superior público é que este modelo de financiamento representa, na prática, o aumento da carga tributária, já bastante alta no Brasil, para aqueles que possuem nível superior – algo que é visto com maus olhos, especialmente por aqueles que defendem o Estado mínimo.
“Então, olhando para os dados, eles não corroboram os argumentos que são usados nesses projetos de lei ou propostas de emenda constitucional que já surgiram ao longo do tempo sugerindo a cobrança de mensalidades nas universidades públicas”, conclui o professor.
Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro!
Desde que o PL n° 672/24 veio à tona, as comunidades das três universidades estaduais paulistas que são alvo da proposta vêm se posicionando contra a cobrança de mensalidades, por meio de moções de repúdio, atos e paralisações, como a realizada na Universidade Estadual de Campinas nos dias 24 e 25 de setembro, organizada pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) e pelo Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU). A mobilização conjunta conseguiu a aprovação não só de uma moção de repúdio ao projeto de lei no Conselho Universitário (Consu), como também a aprovação de cotas para pessoas com deficiência na graduação, antiga reivindicação das entidades. Já no dia 25, estudantes e funcionários que aderiram à paralisação acompanharam a Audiência Pública que debateu uma política de cotas para ingresso de estudantes trans na Universidade.
O Fórum das Seis, que congrega as entidades estudantis, docentes e de funcionários da Unicamp, USP e Unesp, e do Centro Paula Souza, também divulgou uma moção de repúdio ao PL n° 672, em que alerta para a intenção de dificultar o ingresso de estudantes de camadas populares nas universidades públicas, em especial através das políticas de cotas e de inclusão aprovadas nos últimos anos.
A Fasubra também aprovou, em plenária realizada em Brasília nos dias 28 e 29 de setembro, uma moção de repúdio ao projeto de lei na Alesp. Para a coordenadora-geral da Federação, lutar contra a cobrança de mensalidades nas universidades estaduais paulistas é levantar a bandeira contra a privatização da educação no Brasil.
“Temos que conscientizar a sociedade que ela vai ser a maior prejudicada, pois é a parcela da população que mais precisa da universidade pública que vai ser excluída dela, porque não vai conseguir pagar mensalidade – e sem acesso à universidade, vai continuar no subemprego, que é o que querem as elites”, destaca Ivanilda Reis.
“Eu sou uma mulher negra, da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, e sei exatamente o que significa isso. É por isso que essa luta contra a cobrança de mensalidades nas universidades estaduais paulistas é tão importante: educação não é mercadoria”, conclui ela.
Barrar a privatização, em defesa da universidade pública!
Para o Travessia, o projeto de cobrança de mensalidades nas universidades estaduais paulistas não tem condições de ser aprovado por ferir o direito, previsto tanto na Constituição Federal quanto na Estadual, ao ensino público gratuito e de qualidade. Ainda assim, é de extrema importância que nossa mobilização se fortaleça, a fim de barrar qualquer manobra na tentativa de fazer avançar esse ou outros projetos do tipo em todo o país. Reiteramos nossa posição totalmente contrária à privatização da educação no Brasil, e seguiremos na luta por uma universidade pública cada vez mais diversa e democrática!
Como ressalta a coordenadora-geral do STU, Marli Armelin, na Unicamp essa luta envolve impedir a implantação do Ponto Eletrônico e o avanço da terceirização, que precariza o trabalho na Universidade e afeta diretamente a qualidade dos serviços oferecidos à comunidade acadêmica e à população. “Um exemplo dos impactos da terceirização tem sido a queda na qualidade da alimentação oferecida nos Restaurantes Universitários que, agora, pode afetar até mesmo as crianças da DEdIC. Seguimos também acompanhando as discussões que envolvem a carreira das servidoras e servidores técnico-administrativos, lutando pela abertura de concursos públicos e pela ampliação de nossa representação nos colegiados da Unicamp, pela regulamentação do trabalho remoto e pela redução da jornada, sem redução dos salários”, completa.